Esquerda Eleitoral, Ações Diretas Fascistas e Resistência Antifascista

:

As Eleições Brasileiras de 2022

Categories:

As eleições de 2022 colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Dia 30 de outubro, aconteceu o segundo turno da eleição para determinar o presidente e os governadores, e Bolsonaro perdeu para o ex-presidente Lula. Mas Lula venceu por apenas 1,8%, preparando o terreno para o conflito que continuará dividindo o Brasil, assim como as eleições de 2020 nos Estados Unidos não marcaram o fim da polarização política.

Após o resultado ser divulgado na noite de domingo, protestos de apoiadores do atual presidente de extrema-direita começaram pelas ruas nas cidades e bloqueando estradas do país. A esquerda institucional e seus movimentos de base se mantiveram recuados e, mais uma vez, coube a antifascistas, torcidas organizadas e moradores das periferias partir para a ação e começar ações de desbloqueio das vias. Essa pode ser uma amostra dos impasses e conflitos que veremos nos próximos anos de governo petista e de reorganização da extrema-direita.

Um problema global.

Não se Derrota o Fascismo nas Urnas

No domingo, dia 30, noite, momentos após o resultado da eleição ser divulgado, um bolsonarista armado matou duas pessoas e baleou várias de uma mesma família que celebrava a vitória de Lula em Belo Horizonte. Na madrugada de segunda-feira, já haviam bloqueios em 221 pontos em estradas na metade dos estados do país, e em dois dias, 26 dos 27 estados contavam com estradas bloqueadas por bolsonaristas, chegando a um ápice de quase 900 pontos com bloqueios ou manifestações pelo país.

Os bloqueios no Brasil não surgiram do nada. Eles atendem à uma mobilização e radicalização reproduzida pelo presidente e seus apoiadores desde a vitória em 2018. Nos últimos anos, houveram outras paralizações os bloqueios de caminhões desempenharam um papel significativo na agitação da extrema-direita nas Américas. No Chile, caminhoneiros de direita organizaram bloqueios nas rodovias, colocando-os como uma resposta ao ativismo indígena mapuche. No México, os trabalhadores dos transportes são frequentemente usados ​​como tropas de choque para exercer pressão em nome do PRI (Partido Revolucionário Institucional). No inverno passado, no Canadá, caminhoneiros de extrema-direita montaram bloqueios em protesto contra as leis obrigando a vacinação. Provavelmente veremos mais bloqueios de caminhões no futuro.

Bolsonaro repetiu diversas vezes que temia ter o mesmo “destino que Jeanine Añez”, que assumiu o governo da Bolívia após um golpe de estado promovido pelas forças policiais enquanto os militares apenas observavam, e acabou condenada à prisão. O fato de que a direção da PRF decidiu atrasar eleitores no domingo e apoiar ativamente os bloqueios dos bolsonarista mostra que o caso boliviano serviu de inspiração para seus planos.

Derrotado, Bolsonaro levou quase 48 horas para se pronunciar. Em seu discurso de 2 minutos, não reconheceu abertamente o resultado, criticou o movimento que bloqueia estradas e recomendou que fizessem outras formas de “protesto pacífico”, mas fez o típico discurso ambíguo da extrema-direita que mantém inflamadas as suas bases militantes ao mesmo tempo em que tenta evitar implicações legais .

Longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro conquistaram a maioria dos cargos nos estados e nos parlamentos e darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Para além dos aliados de Bolsonaro que se perpetuarão no poder, é importante lembrar que seus milhões de eleitores e, especialmente, sua base radicalizada não vão mudar de ideia de um dia para o outro. Como os recentes atos e bloqueios mostram, eles estarão dispostos a levar suas ideias adiante mesmo sem Bolsonaro. O silêncio do presidente após a derrota trouxe à superfície uma articulação radical que se articulou sem um chamado central do líder, de seus filhos ou apoiadores diretos e figuras públicas conhecidas. Os chamados se deram nos grupos de Whatsapp e Telegram responsáveis por criar e difundir notícias falsas, discursos de ódio e conspiracionistas.

Diferente das greves de caminhoneiros durante o governo Temer e as de 2018, essa não é uma paralisação da categoria como um todo, mas de alguns setores patronais e relativamente poucos militantes radicalizados. E não é preciso muito para fechar as estradas. Apenas um veículo e algumas pessoas.

Manifestantes clamando por um golpe de estado militar.

Durante o domingo de eleição a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fez uma megaoperação ilegal de blitz e apreensões de veículos que impediram milhares de eleitores de chegar nos postos de votação, especialmente nas regiões onde Lula era mais popular. No entanto, quando começaram as ações de apoiadores de bolsonaro revoltados com sua derrota, a PRF nada fez para impedir ou acabar com os bloqueios bolsonaristas.

No dia 1 de novembro, o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, o principal da cidade de São Paulo, contou com ajuda direta de agentes da PRF que foram filmados rompendo as grades de acesso ao aeroporto.

Em algumas cidades, como no estado de Santa Catarina, manifestantes adotaram um tom abertamente nazi-fascista, com saudações nazistas e frases racistas.

Ao longo de quatro anos de resistência popular, incluindo a revolta por George Floyd, Donald Trump manteve o apoio inabalável da polícia e do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), mas perdeuo apoio de grande parte da hierarquia militar dos EUA. Em contrapartida, Bolsonaro ainda pode contar com a fidelidade de parte considerável dos militares brasileiros. Após o pronunciamento de Bolsonaro em 2 de novembro, muitos dos manifestantes pró-Bolsonaro dirigiram suas demandas aos militares, exigindo “intervenção federal” – em outras palavras, um golpe militar. Nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro, as eleições não terminam com o anúncio dos resultados nas urnas; eles são, em última análise, determinados pelo equilíbrio de poder dentro do Estado.

Essa “base bolsonarista sem Bolsonaro” pode estar agora à deriva e esperando um novo líder. E sua primeira aposta está sendo nos militares que, ao longo de 4 anos, infiltraram mais de 6 mil oficiais no governo, sendo 2.600 indicados diretamente para cargos de confiança.

Essa foi a recompensa paga por Bolsonaro por ter sido colocado como representante desse “partido militar” informal que é anterior e pode sobreviver ao fim do bolsonarismo. Outro representante dessa classe é o recém-eleito governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O mais populoso estado do país, com maior orçamento público, estará agora sob a gestão de um ex-militar presente nas operações de ocupação do Haiti, comandadas pelos governos Lula-Dilma nas oprações da MINUSTAH, da ONU. Agentes das forças de segurança ganharam eleições para muitos cargos no congresso, avançando uma “politização das polícias”, usando, inclusive, candidaturas coletivas aos moldes daquelas criadas por ativistas que vieram de movimentos de rua dispostos a “renovar a democracia”.

Ações autônomas e antifascistas

Durante pandemia torcidas organizadas, antifascistas e anarquistas e moradores de favelas organizaram redes de apoio mútuo e, ao mesmo tempo, promoveram atos para demandar direito à moradia, saúde, suprimentos e vacinas. Além disso, as torcidas de esquerda foram as primeiras a convocar contramanifestações para barrar carreatas e ações de apoiadores do presidente em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.

Por outro lado, a esquerda tornou o “fique em casa” como um mandamento para sua prática política e preferiu recuar e desmobilizar as ações de rua com receio de que isso desse “pretextos para mais repressão”, alegando que era “isso o que Bolsonaro queria” e precisava para um golpe. Antes das eleições, a estratégia era esperar o governo se queimar para eleger Lula mais uma vez – o único capaz de fazer oposição ao projeto bolsonarista. No entanto, ficou claro que essa política recuada e passiva é uma estratégia permanente, pois mesmo com Lula eleito e o presidente acuado, a esquerda institucional e os movimento sob a influência petista se negaram a convocar atos e contramanifestações. Por exemplo, quando o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) convocou seus militantes a abrir as estradas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contestou, argumentando que a desobstrução das rodovias era papel do Estado.

Vale ressaltar aqui que até o New York Times, um dos mais veementes defensores da passividade nos Estados Unidos antes das eleições de 2020, apontou que o levante de George Floyd de fato contribuiu para mobilizar uma parcela significativa dos eleitores que permitiram a Joe Biden vencer as eleições de 2020. A verdadeira razão pela qual o editorial do New York Times, a liderança do Partido dos Trabalhadores e outras autoridades liberais e de esquerda desencorajam as mobilizações de rua não é porque acreditam que isso lhes custará eleições, mas porque desejam manter o controle total da situação em todos os níveis da sociedade e estão preparados para correr o risco de perder o poder por causa disso.

Se para eleger Lula a esquerda preferiu ficar em casa, agora com o petista eleito é que parece que vão ficar lá para sempre, aguardando a gestão estatal e policial resolver problemas como o fascismo na ruas. O problema é que os mesmos fascistas estão se mobilizando dentro da polícia e do próprio Estado.

Felizmente, nem todos estavam comprometidos com a passividade.

Logo no dia 1 de novembro, torcedores da Galoucura, do Atlético Mineiro, passaram pela BR-318 que liga Belo Horizonte a São Paulo para ver uma partida e romperam sozinhos os bloqueios bolsonaristas, desmobilizando manifestantes. No dia 2, torcedores da Gaviões, do Corinthians, fizeram o mesmo na Marginal Tietê, importante via de São Paulo, ainda jogaram fogos e perseguiram carros dos golpistas. Ainda em São Paulo, antifascistas perseguiram militantes bolsonaristas saindo dos atos de rua.

No feriado do dia 2 de novembro, militantes antifascistas do Rio de Janeiro fizeram um chamado para uma contramanifestação com 50 pessoas para enfrentar mais de 50 mil manifestantes pedindo golpe militar no centro da cidade, sem qualquer apoio dos maiores movimentos ou partidos. Ao chegarem, foram revistados pela Polícia Militar mais preocupada com a segurança da extrema-direita.

A ação direta e radical nunca deveria ter sido o plano B, uma vez que a rua ainda é fundamental ponto de encontro e articulação e as autoridades não tem o menor interesse em barrar o ressurimento de hordas pro-fascistas. Quando anarquistas e antifascistas perdem batalha pela a narrativa e aceitam a estratégia da esquerda hegemônica, aceitamos que as ruas se tornem palco para ação e recrutar membros. Qualquer resistência à extrema-direita e a um novo governo petista deve levar em conta o papel central das ruas e da organização popular.

Antifascistas no Rio de Janeiro desafiando manifestação golpista: 50 contra 50.000.

Brilha a luz de uma estrela morta

Ao invés de uma triunfo da esquerda sobre o fascismo, a eleição de 2022 significou a reconstituição do centro – um retorno a um pré-2013 sem esperança de mudança positiva, em que toda oposição radical será tratada como se estivesse ajudando a extrema direita. Resta saber se alguém ficará satisfeito com essa nova gestão, cujo aspecto mais radical é a nostalgia dos avanços moderados ocorridos há mais de uma década.

A campanha eleitoral de 2022 ressaltou algo que já estava evidente na eleição de 2018 que deu a vitória para Bolsonaro: a esquerda petista e sua base militante e eleitoral só conseguem prometer uma imagem do passado, de 2003 a 2012, quando Lula e Dilma governaram uma nova fase extrativista do capitalismo latino, compensando os impactos da extração violenta de recursos como minério, celulose, carne, grãos e petróleo com benefícios sociais. Essa política foi necessária para incluir as novas classes despossuídas, removidas de seus territórios para dar lugar ao agronegócio, barragens e usinas, e empobrecidas pela urbanização forçada e pela marginalização do trabalho. A escolha para os gestores era bem fácil: era isso ou esperar que mais gente fosse recrutada para o crime organizado ou aderisse à revolta popular.

Agora que o ciclo se fechou, uma extrema direita mais encorajada observa uma nova coalizão de centro-esquerda passificando sua base eleitoral para ela saia das ruas e desista de lutar por uma sociedade igualitária, alegando que movimentos sociais como o levante de 2013 só ajudarão os “extremistas” distantes do centro.

Enquanto isso, Bolsonaro e sua seita ousam prometer um futuro pretensamente revolucionário, de “ruptura com o sistema”, “contra tudo” e contra a “velha política” – da qual ele mesmo que foi parte por 3 décadas como deputado. A imagem de futuro do bolsonarismo e do partido militar é uma reedição de diversos projetos da extrema-direita que vemos pelo mundo, que busca num passado distante uma revisão para seus sonhos autoritários, racistas e misóginos. A bandeira do império brasileiro, carregada por alguns setores da direita brasileira, tem o mesmo efeito que a bandeira dos confederados nos Estados Unidos, resgatando uma narrativa bandeirante de conquista do oeste, quando não existiam leis nem poderes que, em tese, regulam o mandatário, como seria no estado democrático de direito. Para ambos, o cenário perfeito é o da lei do seu monopólio da força armada usada contra o negro, o indígena, a mulher, as florestas e todo o território.

Torcida corinthiana a caminho do Rio de Janeiro exibem faixas que capturaram de bolsonaristas.

Em 2008, a América Latina via uma chamada “Onda Rosa” de governos progressistas que canalizaram décadas de levantes populares – iniciados com o Caracazo de 1989 e a redemocratização brasileira – para vencer nas urnas com o discurso de “mudar o mundo de cima para baixo”. Mas se tornaram apenas gestores humanizados do neoliberalismo. A opção pela conciliação de classe do PT não conseguiu incluir os pobres e satisfazer os ricos por muito tempo. E muito menos lidar com as classes médias, brancas, especialmente masculinas, que se sentiram pela primeira vez sendo alcançados por pobres, negros e mulheres no acesso a estudo e mercado de trabalho. O resultado foi a revolta popular estourar ao mesmo tempo em que o ressentimento reacionário, que conseguiu capturar melhor a energia das ruas, derrubar um governo petista e colocar um ex-militar no poder.

Ao contrário dos liberais e da direita tradicional, Bolsonaro e seus aliados não buscam realmente governar ou administrar o Brasil, apenas tomar o poder e gerir para poucos aliados e para suas bases radicalizadas. Em vez de comprar vacinas, exigir passaportes de sanitários e controlar o movimento das pessoas em nome da saúde pública, por exemplo, ele simplesmente deixou as pessoas morrerem para manter a economia funcionando.

Tanto Trump quanto Bolsonaro não conseguiram se reeleger como a maioria de seus predecessores. E agora o pêndulo da democracia volta para o lado progressista. É uma questão de tempo até que os novos governos da social-democracia decepcionem mais uma vez as bases exploradas e excluídas e a revolta exploda, como já vemos se desenhar no Chile e nos Estados Unidos. E o fascismo estará a espreita mais uma vez para reunir seu exército.

Uma oposição à esquerda que quer esperar pelas instituições, pelos direitos humanos e internacionais, por um julgamento no Tribunal de Haia, que se compromete com a paz e os ritos democráticos, está naturalmente desarmada e despreparada para enfrentar um inimigo disposto a matar ou morrer enquanto delira pelo seu líder, por deus e sua imagem de futuro glorioso. Assim como esperar que o Estado acabe com os protestos e puna militantes golpistas, ou demandar que faça isso com discursos que criminalizam o protesto, os bloqueios e a ação nas ruas apenas vão dar mais armas e legitimidade às polícias e aos justiceiros que vão nos enfrentar quando formos nós nas ruas protestando por motivos reais, como moradia, comida e dos territórios que sustentam nossa vida.

Também e notório que o uso das fake news e do sensacionalismo podem ter ajudado a desestabilizar a propaganda bolsonarista na reta final, mas alimentar a máquina de desinformação, confusão e a mediação da realidade por corporações como Meta e Google é preparar um terreno para uma luta que estamos condenados a perder. A extrema direita tem uma vantagem fundamental no sensacionalismo da mídia, pois não tem nenhum escrúpulo em mentir e a confusão geralmente serve à sua agenda.

Como fizeram nos anos que antecederam a revolta de 2013, a esquerda institucional voltou a optar por um governo aliado ao centro e à direita. Desta vez, podemos esperar resultados ainda piores em um contexto muito menos favorável. Ou retomamos as ruas e nos organizamos com base em bairros, ocupações, cooperativas, quilombos, aldeias, assentamentos e centros sociais, ou acabaremos descobrindo que somos obrigados a lutar em terreno inimigo, seja virtual ou institucional, quando for tarde demais.

Nenhuma mudança virá de cima. Ninguém está vindo para nos salvar. Tudo depende de nós.